sexta-feira, 7 de março de 2014

O Luxo e o Lixo

Sou de família carioca que é intimamente ligada ao samba. Desde garoto acompanho os desfiles das escolas de samba e durante todos esses anos, apesar de atualmente não acompanhar mais da mesma maneira como antigamente, cultivo admiração por samba, pelos desfiles e sempre que vou ao Rio é uma tradição ir aos ensaios das escolas pra matar a saudade. 

Faço essa introdução pra dizer que no carnaval deste ano completou 25 anos do desfile antológico da Beija-Flor, que tinha como seu carnavalesco o lendário Joãosinho Trinta, que veio com o enredo "Ratos e urubus, larguem minha fantasia" Este enredo foi uma resposta de Joãosinho Trinta para todos que o criticavam por ele só trabalhar de maneira luxuosa. Pois bem, Joãosinho produziu um tema que falava sobre o lixo. Começou falando do lixo físico e durante o desfile foi abordando outros tipos de lixo: o lixo moral, mental e espiritual, podendo aí enfatizar toda a sua crítica social no enredo. Em sua sinopse que fora entregue aos jurados, Joãosinho Trinta falava de um Brasil de contrastes, que ao mesmo tempo em que tem a beleza e riqueza do nosso país, tendo o desenho geográfico se assemelhando a um coração, é também um país que se desequilibra e que quando vira de cabeça para baixo o desenho geográfico se assemelha a uma bunda, no qual seus excrementos precisariam ser lavados. Esses excrementos então seriam representados na ideia de dejeto, sujeira e lixo, em diversos sentidos. 

   Desfile da Beija-Flor de 1989. Horas antes do desfile a Igreja conseguiu proibir na justiça a imagem do carro abre alas que mostrava um Cristo mendigo. Foi aí que Joãosinho Trinta improvisou com uma lona preta e esta mensagem.

Pois bem, lembrando desse desfile que consagrou-se como um dos mais belos e revolucionários desfiles da história das escolas de samba do Rio, venho aqui tentar falar de esporte. 


E qual paralelo posso fazer?


Nesses tempos de mega eventos no Brasil e de um discurso de que o nosso país vai trabalhando (vai mesmo?) para se tornar uma potência olímpica, fica fácil traçar um paralelo com a ideia de Joãosinho Trinta. Hoje, no esporte, talvez seja a época em que mais conseguimos visualizar o contraste luxo e lixo. Estamos acompanhando a construção e reformas de estádios tornando-os luxuosos palcos para realização da copa, vemos grandes atletas brasileiros com patrocinadores fortes (apenas quando já chegaram no topo e apenas dos esportes mais populares ou televisionados), estampando propagandas e disputando grandes competições, mas por outro lado vemos o gasto desenfreado de verba pública na construção de grandes estádios de futebol, algumas obras de revitalização das cidades que ficarão prontas (será?) apenas após a realização da competição, gastos, gastos, e mais gastos na infra estrutura física. Em relação aos atletas, se os já consagrados recebem apoio, como estão os atletas em formação, que sonham diariamente em defender seu país em seu esporte, treinam horas e mais horas e não possuem uma estrutura básica para seu treinamento? 

Em um país que tem leis e impostos que, no papel, deveriam servir para alimentar seu próprio desenvolvimento, o que pensar quando surge um projeto que está perto de ser consumado onde pretendem anistiar cerca de 2,8 bilhões de reais de dívidas de 100 clubes de futebol? 

Como acreditar em um ministério que deveria desenvolver o esporte brasileiro e que virou essencialmente uma moeda de troca de apoio ou de marketing político e que não tem como prioridade colocar pessoas que realmente estudam o esporte, que entendem de formação esportiva. Um ministério que não prioriza seu maior investimento na base e sim no topo da pirâmide, em troca de propaganda para o próprio governo se valendo de resultados efêmeros, pois se não há base, provavelmente não haverá continuidade.

Título histórico do Handebol Feminino. Atletas tiveram que sair do Brasil pra conseguir sobreviver na modalidade.  E a base desse esporte? Como andam os investimentos para que este trabalho não se perca após 2016?

Vemos assim a prática do que disse o carnavalesco, que foi inspiração pra esse post, assim que terminou seu desfile em 1989: "É o luxo do lixo e o lixo do luxo." Enquanto no "lixo" estão professores, pais, abnegados pelo esporte, atletas se virando pra tentar chegar em uma performance de alto nível mesmo sem a estrutura necessária, abrindo mão de seus estudos e sua vida, temos no "luxo" a politicagem, a corrupção,  interesses pessoais acima do interesse comum em desenvolver a longo prazo e a despreocupação com o real legado que a formação esportiva poderia oferecer que seria a de formar atletas, mas formar pessoas acima de tudo.

Atualmente já não sei o que pensar ou sentir. Se me revolto com todo esse contraste ou me preocupo em lutar para fazer meu trabalho e não me deixar contaminar por todo esse lixo histórico. Histórico porque percebo que faz parte da nossa cultura tratar com desleixo o dinheiro público, a aceitação da impunidade, o conformismo com os desmandos políticos, e tantas outras mazelas como apenas características de um país que vive em eterno contraste.

Para nós, brasileiros, a cultura nos diz que o esporte é "mágico", onde acredita-se que só é talentoso e brilha quem nasceu com um dom. Onde não há planejamento, visão estratégica e trabalho de formação visando o desenvolvimento também da educação. Dessa forma resta-nos torcermos para que possamos caminhar evoluindo e que esse ano possamos olhar o esporte brasileiro e seu desenvolvimento muito além da realização da copa do mundo.

Penso que Joãozinho Trinta, se ainda fosse vivo e recebesse um convite pra criar um enredo com o tema "O esporte brasileiro", talvez de imediato estranhasse e nos dissesse: Já fiz esse enredo há 25 anos atrás.
Mas caso ele topasse o desafio e lembrando como ele gostava de provocar, imagino no desfile, aceito por João, um pesado carro alegórico com cópias dos 12 estádios reformados, sobre eles estariam em destaque os políticos, sorridentes e orgulhosos por suas grandes realizações. No chão, empurrando o carro um povo cansado, com camisetas de propagandas das bolsas família, educação, etc. À frente do carro alguns atletas de base, sofridos e sonhadores, empunhando uma faixa negra com letras brancas:

"Mesmo com tudo errado, torçam por nós!"


E por falar em crenças e cultura, como oficialmente acabou o carnaval... Feliz Ano Novo para todos nós!


Até a próxima.